01 de novembro de 2009: fazia frio, muito frio no porto de Savona às 9 da manhã e eu a posto para embarcar no Costa Concordia. Malas, passaporte, exames médicos e várias esperanças para os próximos 8 meses. Logo nas primeiras horas a bordo, fui bombardeado de informações. Trabalho, uniforme, schedule, cabine e segurança! Sim, segurança. Eu havia enfrentado um vôo de 12 horas até Milão,viajado mais 3 em uma van desconfortabilíssima até Savona.
Tinha acabado de embarcar e precisava ficar acordado até às 15 horas para receber as primeiras informações sobre segurança de bordo. Os oficiais de segurança de bordo eram dois italianos grossos que faziam com que 2 minutos de atraso virassem um warning (3 warnings significam desembarque). E que às vezes praticavam bullying corretivo com quem ia mal na prova ou não entendia direito o inglês macarrônico deles.
Logo no meu primeiro dia tive a experiência que me tiraria o sono todos os domingos às 17h, horário exato em que o navio partia do porto de Savona. Aí tinha início o drill de passageiros, onde eu mesmo trabalhando todos os dias da meia noite ao meio dia, tinha que acordar no meio do meu sono para realizar junto a todo o resto da tripulação o treinamento geral de segurança de bordo. Sim, esse treinamento geral acontecia apenas 1 vez por semana no porto de Savona. Muitos dos passageiros se recusavam a participar desse exercício.
Eu particularmente ficava muito chocado quando os passageiros se recusavam a participar. Pois fazia parte de um time chamado Tango Hotel (existem vários times responsáveis por vários procedimentos durante a emergência) , que era responsável por retirar em segurança pelas escadas os passageiros portadores de dificuldade de locomoção desde idosos a cadeirantes, esses eram carregados por 4 tripulantes até as áreas de desembarque.
Os passageiros do Costa Concórdia embarcavam todos os dias em todos os portos. E para esses passageiros era dada uma palestra no teatro onde o diretor de cruzeiro explicava a todos os procedimentos de emergência. Posso falar que essa explicação muitas vezes era dada para meia dúzia de passageiros, de centenas que embarcavam, pois a maioria não atendia às solicitações anunciadas exaustivamente nos alto-falantes do navio em seis ou sete línguas.
Não consigo descrever o que sinto quando vejo os passageiros divulgando que a equipe de crew era despreparada para a situação de emergência do Costa Concórdia pois esses mesmos passageiros que reclamam da falta de preparo provavelmente são os mesmos que no momento do treinamento se recusaram a participar ou então levaram isso como atração de férias tirando fotos e pouco se preocupando com o que era dito pela ponte de comando. Além desse treino com os passageiros toda semana, a tripulação fazia a cada 15 dias, geralmente no porto de Marseille, França, uma simulação de emergência geral e abandono do navio.
Perdi as contas de quantas as vezes eu fiquei sob sol de 35 graus ou sob um frio de 10 graus em pé por uma hora ou mais para que o treinamento saísse perfeito. Nesse treinamento eram checados todos os itens para que em uma situação real de emergência tudo saísse do jeito correto e sincronizado. Eu não estou tentando tirar a culpa do acidente da empresa ou mesmo dizer que isso não foi um erro humano. Pelo contrário, acredito muito em erro humano.
Aliás, acho inadmissível um acidente como esse no dias de hoje em um navio tão moderno. Porém, quando dizem que a tripulação não era preparada, eu os defendo como se fôssem parte da minha família. E que mesmo depois de 12 horas exaustivas de trabalho fariam o possível para ajudar no salvamento dos passageiros. Sinceramente, quando vi na TV na noite de sexta feira 13 o Concórdia afundando e as notícias vazias na internet, fiquei estarrecido e muito triste mas ao contrário do que acontecia na nave naquela noite fria da sexta feira 13 de janeiro, as minhas memórias dos momentos vividos naquele navio emergiam e vinham à tona mais fortes como se tudo tivesse sido vivido ontem com as pessoas que conheci e percebi como esse erro ridículo estragou o momento de muitos outros tripulantes, momento esse vivido com sucesso durante 9 meses por mim há 2 anos atrás na mesma nave.
Fernando Ferreira de Sousa, 23 anos, estudante de Arquitetura, de Campinas - SP. O Fer exerceu bravamente a função de Housekeeping Steward a bordo do Costa Concordia, European season, 2010.
NA FOTO em Barcelona, numa loja de sucos naturais de um argentino que falava português perfeitamente, depois de um passeio de horas no Park Guell, acompanhado desta que o publica, tua amiga e fã de carteitrinha, Ana Tellini.
Nossa, fiquei emocionada, Fer!
ResponderExcluirEu também era tripulante do Concordia em 2009/2010, e conheci o Fernando. Queria deixar um depoimento também. Segue o que já postei no meu facebook:
ResponderExcluirhttp://www.facebook.com/profile.php?id=100001217652574
O que eu não me conformo é com as matérias que estão sendo publicadas, sem a tal busca da imparcialidade. É incrível como os jornalistas falam o que querem sem ouvir um tripulante. É fácil colocar a culpa na tripulação e simplesmente esquecer que também somos seres humanos, que também temos família, que também temos sentimentos. Nós somos os últimos a querer que algo assim aconteça. O navio pra nós, não é um hotel de luxo, é um lar. Quando um navio naufraga assim, todos sabem o que os passageiros perdem. Mas já se perguntaram o que os tripulantes perdem???? Nós perdemos nossa casa, muitos perdem o contrato até que sejam recolocados em algum outro navio, perdemos todas as nossas roupas (e não só as que levamos pra viagem, mas TODAS), perdemos coisas que compramos com tanto sacrifício (muitos eletrônicos por exemplo) e que muitas vezes seriam presentes para nossa família quando voltássemos pra casa.... E isso tudo sem contar o dinheiro que juntamos na cabine. De meses de trabalho.... Muitas vezes pra conquistar algum sonho ao voltar pra casa.... Um intercâmbio, um curso, uma entrada de um carro.... Enfim.... Além de tudo isso.... Temos treinamento de emergência uma, às vezes duas vezes por semana!!! E somos obrigados a fazê-lo! E levamos a sério! Fazemos esse treinamento tantas e tantas vezes, que já é automático no nosso cérebro cada passo que temos que dar em caso de emergência. Já não podemos dizer o mesmo dos passageiros, já que muitos simplesmente se recusam a fazer o treinamento quando embarcam.
Eu só quero pedir que busquem mais informação antes de publicar uma matéria de um assunto tão sério...
Enfim.... É fácil falar mal de tripulante sem saber tudo o que passamos ou sentimos. Pra nós o navio é muito mais que um resort de férias. É a nossa casa, o lugar que eu por exemplo chamei de lar por 9 meses. Lugar onde trabalhamos muito, sonhamos muito, aprendemos muito, crescemos muuuuito. Onde ri, chorei, me apaixonei, fiz amigos que são irmãos pro resto da minha vida e que amarei pra sempre de todo o coração!
Eu tenho visto no FB passageiro italiano defendendo a atuação da tripulação no desembarque de emergência. Uma senhora disse que a imprensa alegava que os tripulantes non parlavam una parola em italiano e ela disse que foi ajudada por duas camareiras bravíssimas.
ExcluirA questão das línguas nem deveria vir ao caso quando a maior importância é preservar a vida, eu boto minha mão no fogo pela equipe que fazia parte quando trabalhava em drill de passageiro. Um deles, o Fabio, comentou esses dias no FB que o passageiro tb precisa levar o cérebro a bordo, saber o que é e ONDE É sua muster station, participar ATIVAMENTE dos drills, etc.
Fernanda, se quiser escrever mais, mande para anaclaratellini@gmail.com
Obrigada!!!